poética, ana cristina cesar: a escrita

Published June 30, 2023

Reler o livro com seriedade.
Fazer menos concessão.

não sou ninguém para apresentar quem dispensa apresentações, ana cristina cesar foi quem salvou angélica freitas do curso de eletrônica. se não fosse ela não teríamos o útero é do tamanho de um punho? não faço a mínima idéia, mas me delicio na imagem de angélica com a teus pés nas mãos e o barulho que deve ter sido para ela. não amei anacê de cara, achei difícil. acho poema difícil. acho tudo que é bonito difícil. também acho duro ser ruim como eu e fiuk somos nas nossas respectivas escolhas artísticas, no entanto continuo tentando lidar com a minha mediocridade. já ele eu não sei, quando estou mais bondosa penso que ele tenta lidar. se mais alinhada com as minhas injustiças, vejo um homem branco cis safado que não tem vergonha na cara de ser tão depravadamente descuidado com o que se propõe a fazer. não me sinto viúva de anacê e isso não é menos amor.

aqui não há leitura crítica a qualquer traço da obra de anacê. não só porque penso “quem sou eu?”, é porque escolhi brincar seriamente de amar esse livro que tenho lido minuciosamente na maior parte do tempo. uma amiga acaba de me desejar boa brisa e nessa semana tudo o que tenho pensado é em trechos metalinguísticos que foram agarrando em mim. escrever é pulgão tomando tudo. ah mas não destrói. a mim destrói e ninguém aqui acredita que toda destruição é má. não nego, sei que se destrói com maldade também. quando todo o conjunto é logicamente possível, embora materialmente não, escrevo como se preparasse uma carta para ela. postais não, exigiriam a concisão que não é dada a mim. você viu o tanto de vírgula que stephanie me indica colocar. entendo que é um pedido pelo leitor e até por mim, porém - ah porém - quem sabe você virou entidade. está vendo meu problema respiratório desde a infância. me perdoa o estrangulamento.


p. 18, 19

já na porta de entrada sublinho o primeira lição e sua lista de definições sobre os gêneros da poesia. ela segue desdobrando o lirismo. me soa irônico que o poema ao lado, sem título e mais enxuto, fale sobre olhar o poema até vir sangue na boca. hipótese: se de primeira você aprende conceitos quase da ordem da dissecação - parece uma aula de anatomia - em seguida tem algo em outro domínio sobre o poema. perder a vista e sentir o sangue. com o livro aberto, estou na encruzilhada entre os dois. sinto que não devo procurar exatamente o bom poema, porque o bom é da ordem da classificação de um corpo morto. preciso fazer a escolha: quero sangue.



p. 49

quando ela escreve Inventar o livro antes do texto. Inventar o texto para caber no livro. O livro é anterior. O prazer é anterior boboca imediatamente me reporta para anne carson em eros. pois, se livro e prazer são equivalentes porque anteriores ao texto, então livro é prazer? tomo esse livro da anacê como a ideia do que você quer dizer não apenas em uma página, mas o que você quer concatenar, o livro como discurso e menos como escritos reunidos dentro de período de tempo. desejo de dizer o que? e o momento de escrever como esse controle, esse aparar do desejo. p.81 carson diz eros corta o poeta exatamente no ponto em que se encontra essa diferença [entre o eu e não eu]. a escrita é o isolamento e enfrentar essa solidão é um caminho amoroso. e todo mundo que amou sabe a saudade que balança entre eu e você. depois que escrevo é vazio, não sou mais a mesma. é a mesma fome que eu sinto depois de comer muito a noite, de manhã tenho fome de dias. ser um bicho sem saciedade me parece tão perigoso.



p.99

o real de novo. real é a descarga elétrica dos nervos. se tem eletricidade tem real. enfim, poesia. e em vacilo da vocação tem uma comparação que não sei o quanto é comum entre pintura e poesia, e que me levou imediatamente para água viva da clarice. presenteei uma amiga muito amada por mim com meu exemplar marcado então vou lembrar só com o coração e o abstrato da pintura. a estrofe que discorre sobre a pintura inicia com precisaria trabalhar enquanto a estrofe sobre a poesia começa com a poesia não. e segue colocando pintura com afundar, saudades loucas, ininterrupta, enquanto a poesia é telegráfica, me deixa sola, à mercê do impossível. me parece de novo o movimento da solidão de eros e nossa capacidade de suportar esse momento de idas e vindas da poesia. os dias que não serão de materializar e de ficar sola.



p.309

cito anacê

Não quero agora computar as perdas. Perder é uma lenha. Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho. Reesquentando. Joguei fora algumas coisas já escritas porque não era o testemunho que eu queria deixar. É outro. Outro agora. Acredite se puder.


No dia que notei esse trecho tinha recebido uma mensagem que dizia algo como eu quero que todo mundo tenha direito à memória e é lógico que meu caráter canceriano se indentificou. primeiro, anacê cita de muitas formas a memória como um elemento do processo de escrever. escrevo diários. muitas mulheres o fizeram. tenho paixão por ler os diários das escritoras que conheço e, acredite se puder, isso é um testemunho. isso é uma fenda. é um escape. gosto de pensar a escrita não como um momento de revelação. criar novas circunstâncias no mundo. minha escrita é um manifesto também, por muitas coisas. porque meu corpo não pede pouco.