a arte queer do fracasso, jack halberstam: a descriação

Published September 24, 2023
[...] para desfazer o Eu
é preciso se mover dentro dele,
até o âmago da sua definição.
não há outro lugar por onde começar.

imagino que seja como contam: as coisas não estavam nem de todo junto nem de todo separado. pensar a comunicação subterrânea dos cogumelos enquanto o capital demanda ser bem servido. repito muito essa imagem: o som sem o corte da palavra. repito muito essa imagem: enquanto seres da fala somos frutos de uma perda. não quero escrever a sentença que te transporta para um ponto exato. a poeta já cantou o tesão do talvez. hoje escrevo para negar o algo a fazer de mim. semeio alguns grãos, corporifico pedra de rio e correnteza. duros e puros. fracassei em todos os planos.

quase o dia todo eu canto it takes an ocean not to break. o cidadão instigado se fosse assim eternamente eu só chorava. me pergunto se há alguma forma melhor de dispor a louça no escorredor enquanto a lavo. se esse escorredor de bambu é a melhor escolha ou já já vai começar a mofar. se a posição é adequadamente prática. que seria mais prático lavar os pratos e copos assim que terminasse de utilizar. ser prático é um saco. ou será ser prático um bom caminho? sei só alguns termos em que quero o bom. não inclui nenhum aspecto prático. sinto o grude sobre o que significa o que pude entender tomando conta lentamente de cada passagem de pensamento. você todas as regras as prescrições o modo todo apropriado de fazer. não que eu seja só meu coração, o contrário. do barro que fui feita onde não tem osso exposto não tem corte. que outra alternativa tenho? entre vencer ou perder ainda prefiro o assombro. te puxo pela barra da camiseta. vou, só para você ver. e indo, fico com a imagem do seu olho aberto no meu. incomodada com as coisas que vi parecerem mentiras porque só apareceram para mim. que insistência em querer tirar tudo o que sinto. tenho uma leve sensação que só o que a gente sente sobrevive a qualquer morte. um dia sem sentir nada é uma sensação imensa. seguimos medianamente com qualquer despedida que sugira algum lastro de intimidade para poder ir arranhando. preciso voltar a comprar bucha vegetal para lavar a louça. resolver essa sujeira de maneira mais responsável com limão, bicarbonato e um pouco de vinagre.

vocês acham que só porque vão fazer da minha vida um inferno vou ceder. odiar tudo o que tenho. pois bem, vocês dificultam mas não mudam nada. ainda serei esse exemplar sem carteirinha do clube wittigiano. panelinha tem em todo o canto. a gente usa o critério que bem entende para comer na mesma mesa. não observo para distanciar, é o contrário. talvez nunca mude esse estado incessante de não saber então me deixe observar até que meu corpo possa. porque ele pode. vocês podem fazer da minha vida um inferno, mas meu corpo onde vocês menos suspeitam acontece.

ocean vuong fala da prática de aprendizado através da falha e meu corpo todo responde. na minha encruzilhada era eu ou era você. enxergo os dilemas éticos encharcados de oposições simétricas e sinto que a sobrevivência não é exatamente o melhor ponto da minha trajetória. ela reluz dentro da minha cabeça a gente só vai até onde a sobrevivência é possível. me sento um pouco. respondo por educação enquanto minhas linhas de raciocínio abrem como os arquivos de ferro da nossa biblioteca, você lembra? sua mão nas minhas costas para certificar o caminho e a distância. amam tanto a palavra que ao nomear sentem no sopro mágico do corte a substância do sentido. (eu te fiz uma pergunta). olho pro nome dado e não asseguro se é placebo ou alívio. quando você diz que 'se descobriu' fico me divertindo silenciosa no pensamento: você achou a si ou se deu um título? há quem encontre descanso nisso. eu ainda estou apaixonada pelo significante flutuante. me perturbo, entro em curto circuito, vou perguntar sempre do porquê. a mim, manter a ruptura sem criar a palavra pacificadora é uma espécie de exercício criativo da falha. a palavra exata não fala. escapar da atividade mítica que funda a humanidade, dentro de uma sociedade que acredita que rótulos materializam qualidades, é uma atividade com o tipo de dignidade que me atrai. não tenho diagnóstico, nenhum sufixo aglutinador de comportamento e preferências, carreira, remédio controlado, exercícios regulares, conversas branquinhas da sua saúde mental, maturidade. me componho de partes discrepantes depois do colapso. me dê todos os descartes. faço a frase de papel. a derrota não é um caminho individual. a nossa derrota é uma compatibilidade para pegar fogo. a sujeira como o que está fora do lugar. o fracasso como o que está fora do plano. atravessar esse limite como quem não tem nada a perder. atravessar esse limite como quem é proibido e não paralisa. volte e me releia.

não me abandonem.
porque as vezes eu fico sozinho
dentro do meu mundo pequenininho, pá
de problemas individuais meus

não me abandonem.
me chama, me liga
por incrível que pareça eu tô facinho,
firmeza?
não me abandonem é uma falha que cria um outro convite de viver. e a falha não reside na enunciação. quando o corpo mano brow - conhecido por ter o apoio de mais de cinquental mil manos - fala não me abandonem, a gente ri porque não espera. essa fibrazinha que puxa seu sorrisinho logo ali em cima só de você pensar. abertura da pupila no milésimo do susto. ao não abandonar o brow ainda quero entender todas as coisas que acolhemos em nós. quando peço não me abandonem é outro tipo de susto. mas veja, é um mundo extrativista. abandonar é sua arte econômica e emocional. permanecer em comunidade, em bando, a possibilidade criativa da falha. são cinquenta mil manos convidados a não abandonar mano brow. estou te puxando pela camiseta, você está sentindo tudo isso? estar facinho pode virar meu lema. lembro dela dizendo: estamos juntas mas nem sempre. facinho mas nem tanto. pronta pra muitas coisas mas não de acordo com a sua régua. quem não pergunta sobre a régua não vai andar comigo mesmo. individualismo vestido de solidão é o lobo do lobo do lobo. o que adianta eu ser durão e o coração ser vulnerável?

o que me dói fernando
é que me fizeste de
objeto de estudo
deve sim ser muito
interessante voltar ao
gabinete cheio de
histórias de alguém como
eu fernando o que não
sabes é que enquanto me
estudavas eu também
analisava daqui algumas coisas
e vou eu também dizer o
que penso sobre gente
como tu

todas as vidas que comem comigo são as partes discrepantes articuladas da minha fala. você pede tanto pela minha palavra e ainda não alcançou a contraparte. minha falha está longe de ser um conceito do início do século vinte que você tem de cór. se o seu tesão pelo que somos vira uma anedota é porque você nem molhou o pé. somos sim uma delícia de passar na boca, mas continue agindo em descompasso com o enunciado, e veja lá se tudo não vira esse corte mal afiado de navalha. sua ânsia sobre tudo o que eu penso sem olhar para tudo o que eu sinto é colônia. sua incompreensão onde mora meu desvio, uma das minhas possíveis retomadas.

você segurou na minha mão aquele dia em que eu tive uma voz e falei assim: fui eu. e será que você poderia me mandar um áudio? qualquer coisa, besteira. só para eu saber como é a sua voz depois dos processadores, os servidores, as fibras óticas. a sua voz nos ossículos do meu ouvido direito. toda cidade que não tem mar fica nessa falta de praia. toda cidade de praia a grande merecedora de sol aberto no azul de anos inteiros. o contrário disso é mesquinharia. todo mundo deveria levantar da mesa, negar veementemente o pouco. qualquer pele de sal, mas especialmente a sua. não tem dia quente que não me salve de qualquer tumulto. em compensação, os dias de chuva, um longo pergaminho sobre a falta que me fazem os seus pés. do tamanho do bem que um dia foi feito. essa coisa meio casco no outro. quando a minha brutalidade arrefece ofereço meu pescoço. você me carrega entre dentes de volta para casa. amar as muitas formas possíveis de vida é manter esse espanto latejante. é tanto remédio com bula para dizer como sentir. no meu bando ainda todo mundo bicho solto. feridos e soltos. uma coisa aqui e outra ali prendendo. e cada um no seu tempo livrando a pata necessária da emboscada. cada um curando paixões no meio da passeata. ela um dia me disse: você ama demais as coisas. e em mim lufei o meu longínquo ‘tomara’. demais para você é exatamente para nós.

hoje andei quilômetros de bicicleta sendo lambida asperamente na nuca pelo sol assim como os gatos lambem asperamente a minha cara de manhã. escrevi para o meu pai porque durante o trajeto lembrei muito das longas noites de futebol que ele nunca me negou, nunca me escondeu e, por vezes, foram as noites que minha mãe barganhou para obter algum comportamento que eu não oferecia de bom grado. lembrei muito dele me ver transgredir sem me dizer para tomar cuidado. eu digo, obrigada. ele diz, você é uma vencedora. volto duas casas. apesar do mesmo espaço não compartilhamos o mesmo tempo. a minha falha é liberdade fundada constantemente em cada mesa cheia de nós. minha existência física, e sua capacidade de explodir tanto muscular quanto emocionalmente, é minha âncora que não fixa. mais um pouquinho aqui no hoje do que nunca. flanando sempre. explodir para obter justo o que não foi oferecido. busco. tomo. ando pela casa de cueca e sem camisa. meus peitos rufam contra o meu corpo no descer das escadas. eles são pesados. usam com todos os meandros o adjetivo farto. de noite coloco binder, uma regata. descanso nessa sombra de não ser pólo nenhum. gosto mais de mim fora de vocês. hoje estou tão aliviada. saio de madrugada de bicicleta para te encontrar. de veloz, a ventania é algo em mim. não vou crescer nunquinha (e veloz cada vez mais). se a princípio você não obtém sucesso, talvez fracasso seja seu estilo. você não me alcança porque não quer e isso diz muito sobre a gente.

[...] porque aqueles que perderam jamais se endurecem com a perda; eles a sentem profundamente sempre, até a eternidade.

queria dizer que sinto honestidade de algum lugar. alguma coisa me faz continuar acreditando. o tempo passa e as coisas discretamente se movimentam porque apaziguar não está na minha composição. quando eu tenho franqueza, as coisas são mais calorosas. não porque bom, mas porque eu. não recorro. costuro pequenos perdões. sinto honestidade de algum lugar e isso está me mudando. não amadurecer é uma falha que permitiu ao meu coração não recrudescer a ferida. estou mansa. nem por isso domesticada. meu grito está manso, tomando água com a língua. passando as patas lambidas sobre os olhos. sentindo uma espécie de alegria.


leitura em voz alta