o coração do dano, maría negroni: a amoladura

Published January 9, 2024
a literatura é uma forma elegante de rancor

acredito em você tanto quanto sou capaz de acreditar em mim. faço as coisas conforme meu desejo, mesmo que às vezes ele venha em forma de renúncia. ontem ela deitava uma mão sobre a outra e dizia que a justiça não é um bom parâmetro para medir situações complexas. essa frase me parece escandalosa também. entre a despedida adiantada e o excesso de permanência, ainda prefiro não me demorar. gozo com a velocidade mais do que com o copo estendido do qual nunca me sirvo. seguir em frente é não parar essa escalada para baixo, desenterrar todos os pequenos artefatos desse passado pincelar a poeira catalogar medir o tempo e aceitar que o que nos foi deixado é precisamente o que pesa. escovar debaixo das unhas essa terra do ontem. nada disso é uma catástrofe mas a gente vai se ignorar como se fosse: não quero carregar você comigo. e o sentimento é recíproco. a raiva é de não ter dito antes. mania de preferir fingir amor a não ter nenhum.

não existe mais fidelidade aos fatos do que errar o rumo ou divagar.
eu ganhei um vestido branco para a apresentação de final de ano da escola. pela primeira vez em toda a infância estava com um vestido que não me fazia sentir uma mulher e sim uma pessoa bonita. ele era sólido e confortável no caimento dos ombros. esvoaçava sem causar a necessidade de checar se alguém corrigiria a abertura das pernas ou se a velocidade com que corria já poderia ferir o pudor masculino. lembro de olhar para meu par de meias naquele sapato de fivela e me sentir - finalmente - adequada. eu estava pronta. o mundo parecia soprar a meu favor. a sensação era de estar conseguindo. meu corpo todo acreditava. subi na grade do portão e acenei como quem sabe que não está fingindo dessa vez. conforme o tempo vai empurrando a gente ao precipício fui me dando conta que meu colega de dança não apareceria. no desespero a gente quer mais a ideia do que a diversão. eu estava radiante em mim depois de muito tempo. eu só tinha sete anos. não aceitei me apresentar de outra forma que não fosse completa.

isso me lembra a cena que criei sobre sua infância de tanto você repetir como sua mãe chegava em casa passando o dedo nos móveis para checar a limpeza. percebo a forma que ela levanta o pescoço assim como você quando se desagrada. o jeito dela te olhar tão reto como a trajetória da sua mão batendo na minha cara. olho para ela e é nítido que o que nos une é uma linhagem de quem ou abandona a mãe ou a si mesma. eu tive um professor de matemática que dizia sob o bigode que não existe meio certo. ele era casado com a professora de história e para ela eu oferecia a minha letra mais bonita. não existe meio certo. naquela época eu entrava na biblioteca de duas prateleiras. pensava que era bonito se interessar por livros. me cairia bem já que eu seria sempre meio assim. adornar com essas fitinhas que você detestava mas deixava que os outros me colocassem. escolhi começar a escrever com letra de forma anos depois. quanto mais de não a gente vai ter que viver juntas? o primeiro livro que tentei ler - e não era sobre como deus pode matar aqueles que não o obedecem - foi romeu e julieta. odiei também. aceitei entrar em cena mesmo que fosse para não ser eu.


que estranho crescer.
a gente se cerca como pode, se não de afeto, pelo menos de presença, de carapaça.
sinto que penso muito sobre o passado recente. e evito escrever porque toda palavra é uma pista do inconsciente. reclamo bastante e tenho evitado ser vista de frente. decupo as nossas conversas e isso me dá o caráter obsessivo que precisava para garantir que não estou errada. odeio todo tipo de conversa pouco interessada cheia de perguntas sobre o que faço da vida. se eu te falar sobre tudo o que não faço você me entenderia melhor, mas a questão toda é quem aguenta esse clima. lá vai ela sem conseguir olhar ninguém nos olhos se não for para falar de astrologia. faço parte da geração que não tinha internet, telefone, computador. ao contrário do que você está pensando, eu não fiz nada com isso. continuamos aqui inventando distinções rotulando informação. tinha uma propaganda da chegada do sms e eu tentava ser cética ao mesmo tempo que me impressionava apontar para alguém um telefone para enviar uma mensagem. meu pai tinha um pager e (se você sabe do que estou falando) você sabe do que estou falando. um dia pensei ter mandado um email para o site de cartões virtuais pedindo para aumentarem o espaço disponível para a mensagem dos cartões. minha mãe o achou dias depois parado no computador com status a enviar. você não sabe o quanto posso colocar uma memória do lado da outra sem distinção entre o que foi possível ver e o que foi possível inventar. estou entre as coisas.


quem escreve cala.
quem lê não rompe o silêncio.
o resto é vício.
disposição para enfrentar o que somos; o que, talvez, poderíamos ser.
ela sempre diz:
te amo tanto que dói.
respondo que não deveria ser assim
minha terapeuta me pede para investigar o que dele ainda existe em mim
aguentar mais um pouquinho a coceira
você primeiro crava unhas sobre mim depois me beija o ombro e eu me sinto amada.

Eu diria que também é trapaceiro. Pois enfeita a dor, coloca plantinhas, fotos, toalhas de mesa e depois fica morando lá para sempre, na capela ardente da linguagem, confiando que nada pode piorar porque, se já dói, como poderia doer mais?
eu pensava não me importar com as despedidas até aprender que a evitação pode ser uma forma de apego. e a boa educação seu cinismo de colarinho. toda despedida nos leva para a despedida original. não quero essa vida adequada feito sinal de tristeza invertido. preciso achar um jeito para despedir sem despedaçar. a coisa mais perigosa que posso fazer é não escrever sobre você. queria ser amiga do menino recém doutor, o que faz crochê e gosta do leonilson. (talvez precocemente) falamos sobre nossos corações partidos. e isso foi tudo sobre a gente. às vezes simplesmente sabemos que precisamos ficar perto de alguém, às vezes a gente simplesmente sabe que vai partir. na maior parte do tempo as pessoas não concordam conosco. te mandei um postal com meu how could an angel break my heart. recebo um email com seu cuz nothing compares to you. fui sozinha no karaokê que a gente gostava e percebi quantas vezes a gente cantou as músicas que nos despediram lentamente naquela luz azul talvez um pouco roxa o globo rodando and as I try to make my way to the ordinary world i will learn to survive. seu tapa na minha bunda ao descer as escadas. só hoje eu estou pronta para te dizer adeus. teu poema favorito ainda estou terminando de bordar.