nota esparsa 3: a literatura tem uma festa no brasil

Published December 1, 2023



se eu estivesse um pouco menos triste talvez escrevesse com a minha inocência narcísica:
viver as coisas pela primeira vez é um vício.

conforme abro mão de falar fica mais difícil escrever. não sou dada a grandes coragens. a única coisa que tenho pedido é que se fizer bom tempo amanhã que eu não morra. que eu consiga lavar os pratos. manter minha cama limpa. poder andar no chão descalça sem tanta coisa grudando em mim. responder com educação no máximo oito horas por dia. um pouquinho menos de vozes nessa lua. mostrar que a comida quando é feita em casa - mesmo que sozinha - ainda é melhor que muita conversa. tem um tempão que as palavras são tudo o que guardo mesmo quando me dão pouco porque em algum momento vou saber o que quero fazer com elas. e ultimamente não entendo quase nenhuma mensagem que mandam. os pequenos gestos de orbitar nessa fina maquinaria de suposições. se eu escrevo a coisa acontece pela força de acreditar que se o som corta a coisa fica sendo. a conclusão é sempre por chamar. até que não seja. todo mundo segue. eu nem tanto, mas dizem que as vezes é fingir costume até que em vinte e um dias você tem um hábito. aqui foi demais, mas continuo estendendo a mão para entender melhor o toque.

no fim estamos andando como animais que precisam descobrir se o casco é o calcanhar ou a ponta da planta do pé. as ruas de paraty são infernais. onde quer que você entre tem algum livro feito por alguém que está ali com o corpo todo. que ja ficou muito tempo pensando na melhor palavra para. não sei se um dia serei capaz ainda estou tomando um susto atrás do outro.

o que tem dentro de alguém para escrever como ela escreve? e o tamanho da aura das mãos.

é um trator
é um trator
meu avião voando nesses ares
o meu barquinho navegando nesses mares
o meu barquinho carregado de ouro
chegando enfim
chegou o meu tesouro

entrar num casarão e ouvir há quanto tempo a família o mantinha fechado. o sarau é uma coisa a roberta estrela d’alva é outra. o que ela faz ali, como ela mesma diz quando volta a sentar, é o slam caralho. saber poemas de cór é uma coisa a roberta estrela d’alva é outra.

tatiana pequeno assinava seu teoria da ressecção enquanto eu agradecia por ela existir. corri para poder ler na beira da praia e passei os dias seguintes vivendo com boa parte da minha cabeça nesse livro. releio seus livros para me recompor.

tem uma aura de círculo dos iniciados. tem uma aura de preparação para o círculo. fica cheio como é a virada do ano na praia, mas me disseram que esse ano nem encheu tanto. sinto gosto de mar até no pão de queijo. choveu demais.

sharpe fala que o efeito do trauma é aumentar o vestígio. pergunta sobre o que aconteceu aos corpos lançados ao mar dos navios tumbeiros. lê o trecho do seu livro que nos mostra que ninguém morre de velhice no oceano. o sangue humano é salgado e o sódio tem o tempo de residência de 260 milhões de anos. sharpe lembra que nessa grande kalunga os átomos de todas as pessoas negras lançadas ao mar são hoje. leda maria martins canta porque ela vem de um povo de reinado, pede licença. lembra a poiesis da comunidade negra ser sinestésica. do outro lado da praia tinha silvia federici. a flip é sobre escolher mas também sobre escutar onde se deve estar.

um livro é uma obra de muitas pessoas. quem escreve, as pessoas que são ecoadas nas palavras de quem escreve, as pessoas que traduzem e as pessoas que ecoam no seu trabalho de tradução, as pessoas que pensaram o design do livro, as pessoas que apertaram os botões para as máquinas de impressão, todas as pessoas envolvidas na construção das máquinas que tornaram possível sabermos de sharpe, traduzirmos ela. não existe trabalho sozinho.

tem alguma coisa a ser aprendida quando dionne respira e coloca a mão sobre o peito antes de responder. e como ela argumenta sobre não ser a pessoa que deseja ser nos poemas que já foram escritos. falhar falhar falhar até que seja. reelaborar com medo mesmo. isso tudo é trabalho. alguém pergunta: a poeta precisa comer. dionne responde sobre o retorno material da poesia: it makes a life. you cannot make a living, but it makes a life.

todo o resto não entendo. faz sentido o trabalho da palavra. todo o resto não entendo. já tenho idade suficiente para ter desagradado muita gente. ao mesmo tempo cheguei faz pouco tempo com vontade. não precisa provar nada para ninguém porque não há o que ser provado. faz sentido trabalhar com a palavra.

a primeira vez que subi a angélica de bicicleta na chuva pensei que muitas coisas mais são possíveis.

não é o confessionário é a testemunha que tem - na sua posição de mundo e de tempo - algo a revelar. só acredita quem quer. só vê quem acredita.