nota esparsa 5: os mamíferos que fazem carnaval

Published February 22, 2024

um dia uma amiga me deu a frase repertório de memórias ausentes. não que eu tenha entendido a frase assim que ela me entregou. não que a gente entenda frases por completo. alguma coisa em nós sempre falta porque alguma coisa da palavra é arbitrariamente finda porque alguém não suportou o urro. eu sabia que não se tratava de esquecimento. e soube que existem memórias que não temos e mesmo assim nos dão saudade.

foi nesse carnaval,

adensar com outros o máximo possível para comungar a canção e o sol. subir uma rua no pulo do frevo. borrar o que seria um corpo e o que é possível faiscar nessa aproximação. descobrir que preciso voltar para onde nunca estive. é bom ter intimidade com a canção. é muito bom conseguir cantarolar sua canção enquanto vira o pão na chapa. conseguir acompanhar sua canção no violão. poder cantar alto a canção com a dona da voz. poder cantar de pulmão cheio uma canção em português sob o sol do verão no brasil. tem gente de carne de carnaval. é algo do sopro do som que é carnaval em mim.

foi carnaval antes, foi carnaval depois, foi carnaval durante semanas. dançar como se pudesse esticar a juventude que se despede. suar como se pudesse alcançar a temperatura que o nirvava deve ter. experimentar o quente sem arder é transe. e se arder alguém providencia água de escorrer pelas cabeças. é descobrir um corpo que existe pisado pelo ideal. é salvá-lo na realidade ancestral em ser um mamífero. o que pensam as aves ao nos ver assim, esprimidos e barulhentos? o que imaginam os ratos debaixo das ruas nos intuindo enquanto pulamos onde tudo era só passagem para algum fim?

me interessa a dança que não é acasalamento. a luta que não fere. o gesto sem utilidade. o que circula de primitivo na sabedoria das fanfarras. as baterias. os metais. teclados. vozes. alguém segura o microfone, uma multidão segura a voz do canto, as mãos em queda no atabaque, todos como um secto sem pacto que sabe o que fazer até quando a curva entre a ipiranga e a avenida são joão parece uma viela. talvez as baleias se juntem sem explicação evidente e isso é o que há em outros mamíferos mais semelhante a nós no carnaval. não é o dedo opositor. a linguagem. não há nenhum animal como nós nessa festa e essa é a nota que ainda me intriga.

eu tomo banho dentro do eco do carnaval

tem quem traga a fantasia. a minha ilusão sou eu.