oficina colocar cadeiras para as palavras

Published October 29, 2023

estou num carro com susan sarandon. e acredite, já não temos mais os lenços. o mundo é terracota. azul estalado de céu. seria bonito se tocasse janis joplin chamando bobby mcgee. acontece que o rádio do carro apita como uma geladeira inexplicavelmente apita às quatro e tanto da manhã. é susan sarandon quem está aqui mas estou irritada por estar irritada com o som do rádio que parece uma geladeira alarmada. desço do carro com alívio. ela diz senta no chão e todo mundo obedece. a palavra tem os seus pudores cabe a gente não se enganar. o alarme continua. é uma música esquisitíssima no rádio do carro. é o som de um menino batendo duas colheres na roda de samba. é a luz do olho de susan sarandon.

os estratagemas para ficar são terríveis.

as luzes mal escolhidas incomodam, mas o som quando erra fere mais. é possível fechar os olhos para evitar ver, mas o ouvido não se cala. procuro onde não fique de costas para saída. onde nem se quer possamos pensar em alarmes. estou de frente para uma saída sem escapatória. susan é a visão mais interessante do que é fumar distraidamente seu cigarro. o alarme é ininterrupto. tapar os ouvidos é renunciar à sua voz e isso está fora de cogitação. misturo o alarme à música que tirei na guitarra para você cantar. aquela que não era para ser nossa despedida e acabou sendo. não tinha como ser menos perfeito. o alarme apita. suas mãos na minha jaqueta me sacodem enquanto nos aproximam. susan sussurra and so castles made of sand

melt
into the sea,
eventually.

gostaria de não ser da turma que lê manual de instrução antes do uso. também é verdade que faço uma leitura dinâmica antes do meu gesto de desdém. jogo os manuais fora pensando nas versões digitais. mesmo dormindo meu ofício é ligar pontos. é a geladeira da minha casa que apita. não imaginei que geladeiras pudessem apitar qualquer tipo de mensagem. muito menos que as mensagens pudessem ser urgentes. é quatro e tanto da manhã. não li seu manual. não vou procurar a versão digital. não sei qual o problema com a função de congelamento.

será ainda mais manhã daqui a pouco. ligo pontos porque este é o meu ofício. é exaustivo conhecer incessantemente mais o que ignorar. traçar a linha de mão livre entre as coisas conhecidas e o arbítrio. se não sentir o arbítrio você não entendeu a face dissimulada da brutalidade. é só uma geladeira, o apito repetindo, meu ouvido que não cala, os olhos molhados de susan, meu zelo com a morte dos pontos sobrescritos no traço entre a coisa e seu fim.

hoje vou faltar ao trabalho e ligar pontos o dia inteiro.
peço por gentileza que fechem os olhos.

a minha memória mais antiga contém medo. se chamo de medo é por puro exercício de delicadeza. queria dizer terror e ver o coração de vocês saltar. não porque queira causar qualquer mal a qualquer um de vocês. minha violência não é gratuita. queria acreditar que concordamos sobre o que é o terror. contudo, é sabido que não. e isso é sabido com revolta da minha parte. nada disso implica que em algum ponto seja sabido sem revolta também. foi como no dia em que estava dentro do ônibus cheio e entre cada abertura de mil corpos e braços pro alto ouvi um alarme. era um homem excitado sobre uma criança. diante do relance do terror sou também aquilo que lê manuais de instrução antes do uso. minha geladeira tem um alarme. diante do terror tenho paralisia. a voz é o meu primeiro abandono. o ônibus chegou no terminal e todos desembarcaram. o homem sumiu enquanto eu não contei para ninguém até hoje.

não é porque tenho a brutalidade como forma de saque e armadura que concordamos. traço a linha entre a coisa e um fim e na sequência a borro com qualquer superfície úmida do meu corpo. falo sério sobre fecharem os olhos porque quando eu falo “olho” você não pensa no molhado da fuça de uma vaca parada na estrada. mantenha a respiração o mais serena possível. qual é o instinto que acende quando você fecha os olhos, repousa as mãos com as palmas pra cima sobre a sua perna e pensa na voz que o terror tem? estou horrorizada porque a memória mais antiga que consigo acessar é um exercício de poder.

ela me convida para entrar debaixo do lençol em silêncio. ela me dava de comer, me ensinava como atravessar as ruas, me permitia escolher com qual roupa sairia dentre as roupas que nunca quis, não puxava muito o meu pêlo para arrumar meu rabo de cavalo. eu não sabia ler na época em que ela abria o lençol me fazendo confundir silêncio com segredo. e desde então faço um silêncio mudo. essa é a minha memória mais antiga. a que, como vocês sabem, contém o horror do exercício do poder. chamo tudo isso de medo. e isso é não olhar dentro do olho do poder. não usar o sangue para o revide. a minha geladeira apita e preciso adivinhar onde informo saber sobre o fim do ciclo do congelamento. são quatro e tanto da manhã. perdi susan de vista. o alarme dá uma trégua. o risco entre paralisia e horror é fundamentalmente elétrico. estou exausta de ligar pontos mas repito o gesto como se fosse incansável. como se a cura fosse um conceito menos horroroso para falar de exercício de poder. bell colocou a mão no meu ombro para dizer que não era possível ligar os pontos entre cuidado e amor. não ligar mais esses pontos é minha primeira liberdade.

leo levanta dizendo com certa severidade que as coisas calmas cutucam tanto quanto um tiro na testa. ele vem em minha direção. agacha. coloca cada mão sua em um joelho meu. me abre lentamente. entra no vazio entre as minhas pernas. me olha de baixo para cima. leo, eu estou bordando as cicatrizes ainda. ele segura na minha cabeça. suspira: você sabia que é uma tarefa dura te amar e ver que você não enxerga? susan já chega concordando. gente, vamos sair daqui? me preparo para partir e não me despeço. estou diante de uma saída sem escapatória e o alarme da geladeira não para.

as vezes é assim no meio da madrugada. as vezes no meio das coisas inofensivas. se fico alerta aos alarmes querendo não ser surpreendida não tenho tempo para mais nada. convivo com o eventual sufoco dos fatais alarmes. as paralisias repentinas. é preciso não estar alerta para me tornar possível. a geladeira parou. quero descansar de traçar linhas entre pontos. a forma como o terror pode vestir o banal me insulta. queria lembrar a primeira vez que escrevi meu nome e o prazer que descobri nesse gesto. saio como quem sai debaixo da cama nesse jogo de esconde-esconde entre silêncio e alarde.

tiro a geladeira da fonte de energia. abro a porta. susan quer tomar sol em qualquer lugar com água porque sabe que sob o sol tenho mais facilidade para acreditar no amor.

só mais cinco minutos? estou decidida a comer tudo o que tem dentro dessa geladeira. disponho tudo pelo chão. todos nós comemos sem sentir prazer. não desliguei a geladeira buscando redenção. não vou comer essa comida apenas para consumir sua função. decidimos não passar pelo fogo. somos cúmplices do nosso exagero. ouvimos o barulho das nossas bocas comendo o frio das coisas guardadas. todas as coisas que temos sem preparo. vocês podem abrir os olhos se me respeitaram a ponto de os ter fechado até aqui. levem com vocês a minha memória mais antiga. não esqueçam a voz que tem para vocês o horror.

susan quer largar tudo e ir pro méxico. estou avaliando. não há manuais sobre como largar tudo e mudar de país. se a gente quer interromper a repetição precisamos tolerar não saber como. até que a coisa toda cessa e você continua sem ter uma ideia clara de como. depois desse banquete todo o resto é silêncio sem constrangimento. deitamos um sobre os outros no chão que também é frio. estamos aqui para trocar o calor possível. se te conto o que escrevo não é na esperança de te mostrar o impossível pois isso não se faz sozinha. é porque susan acha que a gente não morre se tomar gosto por se surpreender.