fragmentos completos, safo: a eternidade

Published July 26, 2023

[…] as Musas a tinham abençoado e tornado invejável e que mesmo depois da morte ela não seria esquecida.

só admiti meu medo da morte depois que li toda a poesia de hilda hilst. antes disso, achava um sentimento contra intuitivo. era preciso que eu fosse mais esperta. suponho: se um amor morre, e você não atravessa o luto, o tema da eternidade pode virar uma obsessão. de repente você cria um deus que gruda, pune tudo que toca e todos nós lambuzamos na cena de quem manda quem obedece quem merece morrer. o que você perdeu, e que possuo, e que você precisa me tirar?

e, ainda que eu tenha gatos
não vejo graça em abraçar felinos maiores.
roubar de mais gente a selvageria para não machucar meus afetos.
me enrolar em tanta coral. e porque
quando corro não tenho vontade de achar um abraço
(e sim ficar nessa energia cinética)
borro seu sonho de eternidade,
e morro mais um pouquinho aqui.
de fato, me aturar escrita é menos pior.

continuo todas as conjecturas, passando meus dedos nas fichas catalográficas da biblioteca pública, e estimando - como enlaço todas essas memórias exatamente no seu momento de perigo? e ser exata. romper com a face violenta da morte. rir de lembrar você ao mesmo tempo comigo dizendo “a gente só teme aquilo que deseja”. só posso supor nosso olhar por meio do seu. e gasto tanta imaginação nesse ponto cego. pensa: você tem mais acesso à minha cara do que eu. e se suponho que o que você vê, revela mais do que aquilo que eu sinto? quais gestos minúsculos vocês perderam a capacidade de fazer? olhar no espelho. sentir que alguns medos têm tantas consequências que a gente não aceita.

como quiserem

cuidar de si e sentir solidão é um momento de ambiguidade. consigo me perdoar desde os ombros. escolher com cuidado a música. falar alto para me ouvir de fora para dentro também. treinar soltar meu corpo, para quem sabe, experimentar ele na próxima vez que sair com as minhas amigas. repassar as últimas coisas interessantes que encontrei no caminho para casa. não esquecer. arrumar um lugar melhor na estante para ver e, de ver lembrar e, de lembrar me manter mais um pouquinho aqui. não aceito que morrer é meu fim também. nem mesmo depois da última pessoa que lembrar de mim - e olha, falo com tão poucas - que provavelmente serei a última a me lembrar para minha própria morta. e esse último gesto de auto cuidado não doerá menos do que o de hoje. e nem será menos libertador. veja, não quero cumprir com uma demanda. o outro também pode ser desejo.

me incomoda como a gente quer ser eterno sem saber plantar. e falo disso porque não aceito morrer e matei algumas mudas. as coisas pareciam simples e de repente a acidez/compactação/nutrientes do solo, o excesso de chuva nas montanhas, as formigas, os animais híbridos e noturnos, a longa viagem que fiz para entender quando voltei - e todas as mudas estavam mortas - que determinados arrepios no meu corpo são nãos. as vezes fico lisonjeada, as vezes me encurrala. todas elas nãos. a eternidade ancestral da jaqueira não se compara com uma vida. abro sua fruta para comer, não extermino. coisas passam pelo fogo e damos a esse ato o nome de cozer. outras coisas passam pelo fogo e damos outros nomes a esse ato como queimar.

eu hesito pois sinto este duplo pensar em mim

falar com medo mesmo e não conseguir manter uma voz fingida e segura. me exigir o tom correto quando a primeira coisa que abandona do meu corpo é a voz. em segundo, os movimentos prontos que parecem naturais. despenco tantas vezes num passo com aquele seu conselho de manter o falso até ser verdadeiro. me olha. queria esparramar os espasmos no chão, chacoalhar bem as pernas e os braços. não é sobre manha, é sobre abrir o peito todo com as pernas e os braços. quando você pula tanto e a pequena gota passa entre as suas costas e o vão da calça. e meu desejo a te escoar.

o tempo pode mesmo contra o mito que volta à nossa revelia? pode o mito contra o meu coração que mantém mil pernas de cavalos recém saído de dentro da terra?

a)
mas em mim você nem pensa...

b)
ou mais que a mim é
um mortal qualquer que você prefere?

gosto especialmente das coisas que mudam. isso é quase como dizer que até quando o amor é mais imaginação que um punhado de verdades a variação faz parte da espécie. todo conhecer passa pelo imaginar. querer antes o sentimento de um fato é como não ver razão na vida porque não existe você depois da morte. não me apegar a minha imaginação é pôr na língua a substância da minha energia. uma eternidade sem prescrição de conduta em coisas como pedra. por vezes abocanho delicadezas porque minhas mãos fazem movimento de pinça e isso muda tudo na nossa história. sem falar nas muitas pernas que meu coração mantém andando quando carece correr. respirar profundo e descobrir que posso ir mais. e não é porque isso é um fato que se tornará real. espaço vazio não para em pé e você só fica se quiser. passo uma vassoura, fecho a porta. até segunda ordem porque tudo que a gente ganha é para perder. nem mesmo essa porta que peguei na maçaneta com as duas mãos para fechar um espaço? como uma mulher cruzada na outra faz querer que exista um você eterno. e, desacreditar tanto, que todo cruzar fazer novidade até entre eu e você.

sei que alguém no futuro também lembrará de nós

há mais marcações sobre faltas e incertezas. fico me sentindo estranhamente roubada. o que mais nos esconderam?

você já sabe que tenho mania de exageros.